sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

58.

o homem da máquina fotográfica


Paulo Prazeres







Olhando pela janela, o que Josué via era um país sem alma e completamente enterrado. Nos rostos suspensos da gente ele já não conseguia distinguir os seus sorrisos, nem as suas vontades. Era como se os corpos fossem breves e existiam por existir. Sem sentido. Os seus ecos, as suas vozes, também eles ficavam perdidos no ar, suspensos em partículas etéreas que se esfumavam pouco a pouco.
Anos antes, quando Josué enfrentava uma situação daquelas, o seu rosto era de assombro. Mergulhava a memória em busca de desesperos que pudessem despertar tais monstruosidades, mas ao fim de um tempo, o necessário para repensar na dor, a sua atenção voltava a recair sobre o rectângulo minúsculo da sua máquina fotográfica e, automaticamente, os seus olhos disparavam fotogramas atrás de fotogramas.
Agora, com o peso da idade, o seu consciente estava como aquela gente toda: adormecido. Era como se o povo já não tivesse nada para cantar. Era como se já não houvesse nada a glorificar. Apenas a morte era real, verdadeira. A morte e a estupidez dos homens.
Josué quis afastar todas aquelas imagens que o haviam assombrado no passado e, por isso, demorou-se naquele cenário previsível em que agora vivia. Guardou em recantos da memória as imagens que a sua lente sigilosamente havia fracturado ao longo do tempo e decidiu-se a observar aquilo que havia visto em tantos sítios mas nunca ali tão perto. Estava tão perto da guerra que havia-a ignorado, simplesmente. Não sabia se por desprezo, medo, horror ou cobardia, mas simplesmente havia-a abandonado para poder desfrutar de outras guerras menos dolorosas. Sabia agora que era puro engano.
Aquilo era tão doloroso como em outro lugar qualquer. Os rostos suspensos das gentes eram tão iguais ali como o eram no Iraque ou no Afeganistão ou no Irão ou em Israel ou no raio que o partisse.
O inferno tinha forma humana. E o que o despoletava mais não era do que a raiva e a insegurança que provinha do coração dos homens. Das cinzas nascemos e nas cinzas morremos. É antigo. É verdadeiro.
Josué abandonou de vez os braços ao longo do corpo e, impotente, deixou que os olhos da sua máquina fotográfica não mais registassem a miséria humana. Ficou ali, apenas ali, em silêncio, absorvendo o ar fétido que dos mortos emanava, a poeira que o vento teimosamente levantava, até lhe doerem todos os ossos do corpo.
Para onde quer que olhasse, Josué revia a mesma aflição que vira em todas as guerras que pudera documentar. E estava farto. E era hora de abandonar a pátria que o vira nascer, a pátria que lhe dera um sentido para a vida, a pátria que julgara idílica, a pátria pela qual gritara sempre que a selecção marcava um golo, a pátria que éramos eu, tu, ele, nós.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

57.

uma mancha de sangue no sítio de um perfeito coração


Paulo Prazeres







A fila de soldados não era mais do que uma linha de rapazes de olhar frágil. Uma chuva miudinha caía sobre os seus corpos trementes. Os olhos, alertas e devoradores, perscrutavam os fragmentos de uma vida interrompida. De uma vida a quem estavam prestes a privar. Alguns dos soldados apresentavam sinais de fadiga, mas nem por isso se deixavam trair por esse desejo famélico de justiça. Poderiam ser homens e eram homens, mas tinham uma mancha de sangue no sítio de um perfeito coração.
De vez em quando algumas luzes brilhavam ao fundo. O barulho das explosões era por vezes entrecortado por momentos de silêncio total. O homem que estava prestes a morrer já só pensava que tudo aquilo era uma cena de um filme apocalíptico e que, além dele, todos os outros morreriam também. Nem que fosse depois dele. Mas morreriam. Sempre. Nesse momento ele pensou: << ou morro ou fico vivo para sempre >>.
O tiro que saiu da minha espingarda foi o primeiro. Um estampido que apenas foi silenciado pelo matraquear das espingardas dos outros soldados. O homem à minha frente, à nossa frente, sim, à nossa frente, porque tu também lá estavas, meu amor, a segurar a arma, agarrada às minhas mãos. Mas como estava a dizer, o homem à nossa frente não tombou logo. Soltou primeiro um suspiro e depois caiu de joelhos. Os olhos presos no nosso olhar. Parecia que nos queria recordar antes de os fechar completamente.
Não sei se morreu a agonizar. Os seus olhos fecharam-se pouco depois, muito lentamente, como se resistisse a morrer. Como se tivesse mais alguma coisa a dizer. E não temos todos? Há sempre coisas que ficam por dizer, pontas soltas que mais tarde se emaranham umas nas outras quando já é tarde. Como quando tu quiseste dizer que me amavas e não disseste e apenas disseste que não conseguirias viver comigo. Não podíamos dar-nos um ao outro, disseste. Então que fazes tu aqui? A ver este homem morrer, como eu, a meu lado, segurando a arma para que não me caia das mãos? Que fazes tu aqui segurando-me as lágrimas que me caiem num atropelo quase violento? E que fazes tu aqui com os pés metidos na lama, embriagada com o cheiro do sangue que jorra do corpo que eu matei, que nós matámos?
Ao meu lado, a fila de soldados começa a desfazer-se e com ela, amiúde, a chuva parece querer tornar-se num fantasma. Também deixamos de ouvir o barulho das explosões que, por vezes, brilhavam ao fundo entrecortado por momentos de silêncio total. Mas agora sim era só silêncio. Até mim chega o odor do sangue. As minhas botas são engolidas por uma mancha escura e espessa que escorre do corpo do homem que matei, que matámos. Os teus sapatos ficam manchados também. E as tuas pernas têm pequenos salpicos vermelhos desenhados ao acaso.
A fila de soldados desaparece depois no recorte do horizonte. Vejo-os afastarem-se como se tudo estivesse bem. Vejo as suas asas esvoaçarem rapidamente no ar em liberdade. Quero caminhar com eles, quero saber o que sentiram no momento em que premiram o gatilho. Quero saber o que lhes passou pelo coração no momento em que o homem soltou um último suspiro, no momento em que o homem olhou penetrantemente para eles, para mim, para ti, mas as tuas mãos não me deixam. E pensar que queria ter-te entre os meus braços, entre o meu peito que cresce sempre alvoraçado quando me apertas as mãos, os dedos, os lábios e a boca.
Não sei se é da guerra, não sei se é do frio como também não sei se foi por ter morto um homem, mas o meu peito já não cresce tão fugazmente como antes, nem o meu coração jubila, histérico, quando te vejo perto de mim, nem longe de mim e os meus olhos já não rasgam a cor dos teus à procura de vontades por satisfazer. Sei que sou um homem mas esta mancha de sangue que tenho no sítio de um perfeito coração cresce demasiadamente célere.

56.

se calhar…


Paulo Prazeres







Parados na rua estão dois miúdos que se entreolham.

À volta deles há uma imensidão de prédios vazios.

Um carro amarelo dorme numa esquina.

Os poucos marcos do correio que ainda resistem estão assassinados.

Há um silêncio de morte.

Os miúdos entreolham-se de novo e nada se mexe.

A lua está muito gorda e observa tudo o que se passa à sua volta.

Nas portas dos prédios vazios alguns vagabundos dormem o sono das bebedeiras.

Há cães que procuram comida nas esquinas sujas.

O vento começa a soprar.

O ar modifica-se.

E os miúdos beijam-se.

E eles são dois peões que a noite baralha.

E eles embrulham-se com os cães, com os vagabundos, com os prédios, com a sujidade.

E por último com a cidade.

Os seus corpos desnudam-se de qualquer complexo.

E as suas bocas atiram mentiras que ninguém escuta.

Mas, além dos cães e dos vagabundos, quem é que mais ali está que escuta os seus desejos?

Se calhar… Deus observa-os com tentação.

55.

o cheiro a velho que guarda os livros


Paulo Prazeres







Assim que abri a porta senti aquele cheiro a velho que guarda os livros. E, inevitavelmente, tive a sensação que iria encontrar-te. Mas não te vi. Apenas alguns murmúrios que não os teus cresciam rente ao chão. E só depois reparei nas páginas já muito amarelas dos livros a estenderem-se infinitamente por prateleiras também elas infinitas. Mas de ti, nem um sopro sequer.
Quando afastei mais a porta algumas notas a rosmaninho encostaram-se a mim. Depois, tomaram-me conta. Lembrei-me dos momentos antigos. Dos copos com os amigos e das cartas vazadas em mesas de pedra. E depois lembrei-me de coisas que o bom senso me impede de desvendar. E então vi-te: vem – disseste, como que a completar o silêncio entre nós. Os teus gestos eram lentos. Como num sonho, ou, como um sonho. E eu fui. Deste-me as mãos e de novo o cheiro a rosmaninho e de novo lembrei-me dos momentos antigos.
Quis dizer que te amava mas não consegui. Talvez não quisesse amar-te. Não sei. Ou talvez… talvez tivesse medo que me amasses. Encostei-me então a ti. O teu cheiro a misturar-se com o cheiro a velho que guarda os livros. Os teus lábios carnudos e firmes e sibilantes a cortarem-me a pele dos ouvidos: porque voltaste? – porque me sinto só, quis dizer-lhe, mas apenas disse mentiras: porque te amo. Mas também era verdade. Ou não era?

54.

everything must die*
     * canção do grupo brasileiro TETINE


Paulo Prazeres







Assim como as copas das árvores que, ao longe, brilham intensamente com o sol, estavas tu: longínqua. Desperto depois com o estrépito do comboio. Um soluço. Um estremeção. E só depois arranca. Demoradamente.
E por instantes a tua imagem segue-me. E por instantes revejo tudo aquilo que fomos: uma sinfonia acabada. Não mais que um caleidoscópio, quase incessante, do teu rosto sobre o meu.
Depois a tua imagem dá lugar a um horizonte musculado de cinzentos. Às vezes a praia aparece, como um rasgão, num turbilhão de ondas. E depois desaparece. E eu encontro-me, por vezes, a olhar restos de casas perdidas. Jardins desfeitos. Pessoas que passam: algumas que ficam na retina, por segundos. E por segundos, algumas que não as vejo sequer.


Mais à frente o comboio volta a soluçar. São guinchos de coração cansado. E depois pára. E a tua imagem está de novo ali. Parada. Olhando-me. A transparência dos teus olhos invadindo-me. E eu invadindo-te.
Cubro-te, então, como em tempos te cobria, o corpo com o meu corpo. E achamos que, afinal, não há nada a fazer: assim como assim, já não temos idade para recuperar o passado. E assim como assim, sei que já não nos amamos.
E num relance os teus olhos escorrem água, parece-me. Não queria nada que as coisas fossem assim. Não queria que víssemo-nos mais, porque temos de morrer. Um para o outro.


E é de novo o comboio que me desperta. Arranca um novo soluço esganiçado e então parte. Um cheiro acre, a queimado, invadindo-me o corpo todo.
E depois olho-te, mas tu ficas ali tão simplesmente só. O vento a bater-te nos cabelos: revoltos. O sangue inchando-te os lábios: carnívoros.
E então desapareces. E eu também. Depois encolho-me. Tudo tem de terminar, penso. Assim como as estrelas. Ponho-me em silêncio. A escutar. Fecho os olhos e… nada. Uma linha escura e fria à minha volta. Deixo de ver. As casas perdidas. Os jardins desfeitos. A praia. As pessoas. Tu.
E então uma música gigante, como um rio que corre infinitamente, vem-me à memória: “Everything must die”.

53.

fim


Paulo Prazeres







Olhei a cama mas já não havia o perfil do teu corpo, como já não havia o peso dos teus cabelos sobre os meus, como já não havia a tua boca cismando na minha e nem havia as tuas mãos percorrendo-me nessa certeza inigualável com que alimentas os meus vícios.
E agora resta-me o sossego da casa vazia, a televisão que deixou de funcionar, o telefone que já não toca, os filhos que não tivemos, os discos que adormecem na prateleira, os livros que olham-me de lombada em lombada, as carpetes que deixaram de ser limpas, a criada que deixou de vir.
E então pensei:
— Como gostava de voltar à Ericeira.
E como gostava de debruçar-me sobre a varanda do Atlântico e olhar os pescadores de pés molhados conversando com os peixes, os turistas de fim-de-semana atrapalhando as ruas de caranguejos na boca, as casas que surgiam bifurcadas nos ombros umas das outras, os barcos que rasgavam o mar numa confusão de cor, e como gostava de voltar a escutar a tua voz sempre que as ondas pequeníssimas subiam-te as pernas.
Mas agora resta-me esta cama enorme que se torna maior quando a noite cai, quando a lua ilumina o teu canto e os lençóis não se mexem, quando tento despir-te o soutien e as mãos escorregam no vácuo, quando procuro refúgio entre ti e o frio retalha-me o sexo num delírio de álcool.
E então deixo queimar os dedos na urgência do cigarro, o ecrãn negro da televisão que apenas reflecte o teu retrato, os candeeiros que iluminam as divisões em cores doentias, as paredes que deformam-se com a falta do teu calor, os ecos que repercutem-se pelos orifícios da casa, a mesa posta e demasiadamente vazia, e então deixo escoar todo esse silêncio por mim abaixo, deixo-o apoderar-se-me dos nervos, dos músculos, dos ossos, da carne e fico assim, a levitar, até que tu possas acordar-me.
Mas isso não interessa, não interessa se a tua falta vai prolongando-se dentro da minha solidão, porque tudo teve um fim, como não interessa se a cama tornou-se grande demais, se a televisão deixou de funcionar, se o telefone já não toca, se os discos adormecem na prateleira, se os livros olham--me de lombada em lombada, se as carpetes deixaram de ser limpas, se a criada deixou de vir, como não interessa se os candeeiros iluminam as divisões em cores doentias ou se as  paredes deformam-se com a falta do teu calor ou se os ecos repercutem-se pelos orifícios da casa ou se a mesa posta parece demasiadamente vazia.

52.

um breve alívio para a dor da alma


Paulo Prazeres







António Fagundes entrou no café e sentou-se, como de costume, numa mesa ao fundo. Pediu uma cerveja ao criado que apareceu a rodopiar entre as mesas e acendeu um charuto. Abriu o jornal na página cultural e pôs-se a ler a crónica do dia. Quando o criado apareceu com a cerveja estava uma mulher sentada na mesa em frente. Tinha as unhas impecavelmente pintadas de branco e olhava para ele com uns olhos azuis de tinta. António Fagundes era um indivíduo sensível e detestava que o olhassem daquela maneira. Fechou o jornal, olhou de relance a cerveja que amornava em cima da mesa e ficou à espera. Experimentou fechar os olhos e deixar-se inebriar pelo fumo do charuto a ver se a mulher não era uma brincadeira do cérebro. Mas quando abriu os olhos a mulher parecia estar mais perto dele.
António Fagundes endireitou-se na cadeira, desviou os olhos para o criado como que a pedir uma explicação e sentiu-se um bocado parvo. Mordeu então o charuto com mais força, enrolou os dedos trémulos ao vidro húmido do copo e sentiu-se gelar por dentro.
A mulher cruzou as pernas com a mesma despreocupação com que se mata um mosquito e sorriu desapaixonadamente. Tirou depois um maço de Chesterfield Lights de uma carteira de plástico azul cião e prendeu um cigarro entre os lábios carnudos. O criado apareceu a rodopiar entre as mesas vazias com um isqueiro a estalar de chamas.
— O que vai ser hoje, menina Rita?
— O costume, Daniel.
O criado deu uma volta sobre si mesmo, olhou em frente e desapareceu por entre as mesas ao som de uma valsa inavegável. António Fagundes ficou a saber pouco depois que o "costume" da menina Rita era um whisky duplo com muito gelo. António Fagundes acabou a cerveja num trago rápido e ficou a apreciar a sagacidade com que a mulher levava o copo aos lábios e não soube o que pensar. Uma pequena erecção começava a sobrevir do meio das pernas. António Fagundes olhou de novo os olhos azuis de tinta da mulher e arrependeu-se por estar ali. Há três anos que estava casado e nunca sentira vontades por mais nenhuma mulher. Mas agora era diferente e a razão perdia-se numa urgência incontrolada.
E nesse momento, enquanto a mulher observava uma malha das meias pretas, António Fagundes decidiu não esperar mais. Apagou o charuto no cinzeiro de vidro baço e ergueu-se com firmeza. Os olhos azuis de tinta da mulher acompanharam aquele gesto com volúpia. António Fagundes deu dois passos e o soalho rangeu.
Sorrindo e de olhos baixos, Daniel, o criado, trouxe num tabuleiro dois exemplares do livro "Monólogos numa esplanada sobre o mar". Parou diante da figura de António Fagundes e disse:
— Peço desculpa por esta minha impertinência, senhor António, mas gostava muito que autografasse este seu livro. Uma obra e pêras. Li-o num instante.
— Claro, Daniel, mas... porquê dois livros?
— Há, claro, que disparate, este outro é da menina Rita — e apontou para a mulher dos olhos azuis de tinta.
É preciso acrescentar que neste momento o coração de António Fagundes respirava a custo. António Fagundes sacudiu a cabeça num gesto breve e sentiu muito próximo de si um aroma intenso a flores silvestres. Ergueu os olhos num silêncio demorado e então tudo à sua volta rodopiou como num carrossel de infância: os olhos azuis de tinta da mulher estalavam o verniz da indecência.
António Fagundes cumprimentou a mulher numa vénia atrapalhada e endireitou-se  depois no seu fato já coçado. A mulher soltou uma risadinha agradada com a situação e arrematou num abanar de cabeça:
— O livro não é propriamente meu, é do meu marido. Eu, para dizer a verdade, prefiro escritores que exerçam uma carga sexual mais forte nos seus personagens.
— Vejo que a menina percebe de literatura — disse António Fagundes —, mas deixe-me que lhe diga uma coisa: os meus livros reflectem as minhas experiências mundanas e nada mais.
— É como digo — tornou ela —, tem pouca paixão. Talvez precisem de ser abanadas um pouco essas suas experiências mundanas, senhor António. Não acha o mesmo, Daniel?
O criado encolheu os ombros e disse que não tinha nada a ver com as experiências mundanas do senhor António. A mulher tornou a dar mais uma risadinha agradada com a situação e olhou bem para o interior da pupilas de António Fagundes.
— Acompanha-me numa viagem pela noite, senhor António?
O criado baixou os olhos, tornou a pedir ao senhor António que autografasse o livro porque estava com pressa e resignou-se a esperar o gesto natural do escritor que demorava.
— Peço desculpa, Daniel, toma lá — disse, fechando depois o livro.
O criado deu uma volta sobre si mesmo, olhou em frente e desapareceu por entre as mesas ao som de uma valsa inavegável.
— Diga-me a verdade, senhor António. O senhor deseja-me, não é?
— Por favor, menina Rita...
— Porque não me trata só por Rita?
António Fagundes sentiu-se estalar por dentro e não soube o que dizer. Pela primeira vez na vida, após três anos de casado, alguém o incomodava seriamente daquela forma. António Fagundes queria dizer que não, que não queria, que amava a sua mulher e que não estava disposto a sair da linha mas não conseguiu.
E foi então que os seus olhos chocaram com a beleza de mármore que o decote do vestido da mulher de olhos azuis de tinta despejava: os seios, vigorosos como duas luas cheias, pulsavam espavoridos. E então António Fagundes arrependeu-se de novo de estar ali e, sobretudo, arrependeu-se por não seguir as razões do coração.
— Claro que a desejo... Rita — disse por fim.
— Então porque não responde que sim?
Nesse momento alguém abriu a porta do café e a chuva despedaçava-se lá fora.
— Não sei — respondeu ele. — É que nunca me vi numa situação destas e é-me particularmente difícil pensar correctamente.
— O senhor ama a sua mulher, não é?
— Amo-a muito, sim.
— Eu também amo muito o meu marido, senhor António, e no entanto...
Rita. Toda ela estalava de gozo agora. Rita, um nome que queima.
— Eu apenas quero ajudá-lo a abanar um pouco essas suas, como e, muito bem diz, experiências mundanas, senhor António. Quero apenas que você se liberte em mim, nada mais.
António Fagundes olhou o relógio e pensou que o tempo alastrava devagar e quase de surpresa. De súbito, porém, um grande vento de ansiedade inchando-lhe o peito. Ergueu o sobrolho num sorriso envolvente e reviu toda a sua vida com estremecimento. E com um gesto breve, mas súbtil, disse apenas:
— Vamos, não há mais nada que possamos fazer aqui.
A mulher tomou o livro autografado, examinou-o à luz de uma serenidade fidalguia e depois disse:
— O meu marido vai ficar encantado.
António Fagundes viu o peito da mulher crescer num mergulho abrupto e sentiu-se de novo com o sexo numa balbúrdia.
Tinha parado de chover quando sairam para a rua. António Fagundes mandou parar um táxi e seguiram pela avenida 24 de Julho num sossego implacável. E, então, António Fagundes disse:
— A minha mulher faz hoje anos, Rita.
— Você está a pensar que não devia estar a fazer isto, é isso?
— É, é isso.
A mulher dos olhos azuis de tinta acomodou-se mais ao corpo retesido de António Fagundes, chegou-lhe depois os lábios à orelha esquerda e disse:
— Então das duas uma: ou você come-me já aqui ou vamos para minha casa.
E então foram para casa dela. Uma casa com um tecto altíssimo donde se podia ver o mar mudar de cor. Uma casa onde não havia paredes brancas, onde a luz era trazida pelo vento e onde as colchas cheiravam a sândalo.
António Fagundes estava na sala a observar um quadro de Gustav Klimt quando ela entrou. Trazia uns sapatos muito finos de saltos altos, uma saia curtíssima pincelada a tons de turquesa e um soutien branco. Pediu que se servisse de um whisky e que se pusesse à vontade. E António Fagundes gostou. Gostou daquela falta de pudor e, sobretudo, gostou da frontalidade daquela mulher.
António Fagundes sorriu, disse que estava capaz de subir até à lua e ansioso por fazer amor com ela. A mulher soltou uma risadinha agradada com a situação e apontou-lhe os olhos azuis de tinta:
— Escuta bem uma coisa, queridinho. Amor faço-o com o meu marido, contigo o que eu quero mesmo é foder.
Rita tomou-lhe de seguida as mãos frias de desespero e levou-o para o quarto. Deixou cair a saia curtíssima pincelada a tons de turquesa aos pés da cama e pediu-lhe que a ajudasse com o soutien. António Fagundes tinha o coração assustado quando as suas mãos tocaram ao de leve a pele fresca de Rita. Ela soltou de novo uma risadinha agradada com a situação e mostrou-lhe, de uma vez por todas, a ininterrupta força que os seus seios imprimiam. António Fagundes sentiu que o solo se tornava irregular debaixo dos pés e o ar vibrava como se estivesse por cima de um grande forno.
— Isso... — murmurou ela, sentando-se na cama e sem nunca desviar dele os olhos azuis de tinta.
A certa altura, quando Rita lhe abria cautelosamente a braguilha, e toldado pelo calor, António Fagundes fechou os olhos involuntariamente e começou logo a sonhar com a sua mulher. Mas foi uma imagem rápida, descolorida e demasiado torcida, porque logo a seguir era a voz de Rita quem lhe mordia as águas plúmbeas do cérebro com um pedido desconstructivo:
— Deixa-me tocar-te apenas com a língua a cabeça do pénis.
António Fagundes sentiu primeiro um estalido muito límpido quando ela lhe passou a língua, lentamente, pelo sal do pénis e, só depois sentiu, com um ruído ligeiro e húmido, aquele tropel aveludado correr-lhe nas veias do pénis.
Com os olhos agora semicerrados, Rita guiava-se pelo perfume viril daquele corpo entumescido e cada vez mais duro dentro da sua boca. Os lábios fremiam meigamente a cada inalação e os seus cabelos de espuma flutuavam em curiosas interferências.
Por todo o lado luzes intensas projectavam feixes de raios sobre o corpo de António Fagundes, fazendo-o explodir em todos os sentidos. Rita manobrava-lhe o pénis com uma velocidade máxima, fazendo um ruído electrizante com a língua.
Quando sentiu o sexo completamente duro na sua boca, Rita obrigou-o a masturbar-   -se um pouco. Deitou-se depois na cama e prestou atenção aos olhos inquietos do homem. Com as pernas ligeiramente abertas e desviando os cabelos dos olhos, Rita incitava-o a despir-se com calma.
António Fagundes resfolegou, cerrou os punhos e rugiu. Rita olhava-o um tanto apreensiva. O coração batia-lhe depressa, como se estivesse fechada dentro de uma casca demasiado dura. António Fagundes passou-lhe o braço pelo ombro e agarrando o gracioso pescoço penetrou-a suavemente.
— Sim... — disse Rita, encolhendo a cabeça de encontro aos ombros dele.
António Fagundes aprisionou-lhe os braços, cravou-lhe os dedos no peito e mordeu-   -lhe a garganta. Ela tornou a deixá-lo entrar e então começaram os dois a agitarem-se violentamente, como um casal de criaturas sem espírito, num completo frenesi.
Pouco depois António Fagundes sentia os saltos altos dos sapatos de Rita cravarem-  -se-lhe nas costas. Soltou um gemido e parou, ofegante, com as costas esfoladas e sangrentas. Depois levantou-se e ficou de pé, por instantes, espantando-se com a enormidade dos mamilos de Rita.
— O que tens? — perguntou ela.
— Nada... — respondeu ele, hesitante, e com um gesto fatigado.
— Não podemos parar agora — disse ela em voz alta. A sua voz pareceu-lhe estranhamente alterada.
Rita levantou-se e sorriu, esforçando-se por pensar que não era altura de ter na ideia coisas daquele género. Envolveu-lhe os ombros com os braços ainda quentes e encostou o sexo ao sexo dele.
António Fagundes tinha os olhos brilhantes, a pele corada e um ar não muito feliz quando disse:
— Não consigo deixar de pensar na minha mulher, Rita.
— Se queres pensar na tua mulher enquanto me comes é lá contigo — disse ela —, mas por favor não páres com isto.
António Fagundes baixou a cabeça, pensativo, e sentou-a nos joelhos. Rita beijou-lhe os olhos tristes e tornou de novo a deixá-lo entrar dentro de si. Mais uma vez sentiram completa felicidade.
Rita tinha consciência das mãos dele sobre o seu corpo, mas não conseguia ver mais nada para além da ligeira neblina que lhe toldava a vista. Sentia apenas o ventre dele esmagar-se de encontro ao seu, irrequieto e profundamente corrosivo, cujo mar de mágoa se derramava dentro de si.
Rita abriu depois os braços e deixou-se cair de costas na cama, num gesto de quem triunfa em público. António Fagundes sentiu-se satisfeito quando foi derrubado pelo coice do orgasmo, e então ejaculou numa enorme confusão. Deixou-se depois cair a seu lado e ficaram ali muito tempo.
António Fagundes acordou no dia seguinte com uma dor terrível no pescoço. Foi à casa-de-banho, passou uma mão cheia de água pela cara e entrou na cozinha para beber uma cerveja. Chegou-se então à janela e viu o sol acima do mar. Pouco depois pensava em Rita.
— Pensas na tua mulher, não é?
António Fagundes rodou sobre os calcanhares e estremeceu. Rita, um nome que queima.
— Sim — disse.
Rita estava encostada à ombreira da porta da cozinha e fumava um Chesterfield Lights. Tinha os braços cruzados abaixo da curva dos seios e uns olhos de água. António Fagundes não sabia porquê, mas aquela urgência de partir obrigava-o a mentir. Talvez fosse uma sensação de culpa aquela que lhe apertava o coração.
— Agora tenho de ir, Rita — disse por fim.
— Isso — fez ela com desagrado —, faz o que tens a fazer.
António Fagundes aproximou-se dela e cravou-lhe os olhos com violência. Ela ergueu para ele os olhos azuis de tinta e envolveu-o com os braços: tinha os lábios abertos em ansiedade e as lágrimas pesavam-lhe no rosto.
— Tens mesmo de ir?
— Sabes bem que sim, Rita.
Ela afastou-se e ficou a observar o mar que crescia lá em baixo. Pouco depois dizia:
— Gostava que ficássemos amigos.
António Fagundes não respondeu. Beijou-a nos ombros e saiu para a rua com uma indiferença no olhar. Estava uma manhã fresca, de uma luz rósea, e as ruas mantinham ainda as poças da chuva anterior com os seus ridículos brilhos carregados de luz.
António Fagundes entrou no primeiro táxi que encontrou e fez uma tentativa desesperada para esquecer toda a gente. Quando chegou a casa era em Rita que pensava. Acendeu um charuto e entrou no quarto. A cama lá estava — incómoda e absolutamente inerte. Sobre ela a forma gritante de uma mulher.
António Fagundes inspirou o fumo do charuto e sentou-se na cama para pensar. Por vezes, aquela inebriedade do fumo era para ele como um breve alívio para a dor da alma. Quando acabou de pensar, António Fagundes tinha os músculos do rosto completamente retesidos.
 No chão, levado por uma brisa furtiva, uma ponta de cigarro manchada de baton. Pegou-a e imaginou um desespero maior que o seu. Sabia que quando acordasse ela iria perguntar por tudo, até mesmo pelo sangue nas costas da camisa, e pelo cheiro interdito no seu corpo, mas António Fagundes sabia também que as horas ao longo do tempo fazem voltar ao amor que não se reteve. E isso tranquilizou-o um pouco.