um breve alívio para a dor da alma
Paulo Prazeres
António Fagundes entrou no café e sentou-se, como de costume, numa mesa ao fundo. Pediu uma cerveja ao criado que apareceu a rodopiar entre as mesas e acendeu um charuto. Abriu o jornal na página cultural e pôs-se a ler a crónica do dia. Quando o criado apareceu com a cerveja estava uma mulher sentada na mesa em frente. Tinha as unhas impecavelmente pintadas de branco e olhava para ele com uns olhos azuis de tinta. António Fagundes era um indivíduo sensível e detestava que o olhassem daquela maneira. Fechou o jornal, olhou de relance a cerveja que amornava em cima da mesa e ficou à espera. Experimentou fechar os olhos e deixar-se inebriar pelo fumo do charuto a ver se a mulher não era uma brincadeira do cérebro. Mas quando abriu os olhos a mulher parecia estar mais perto dele.
António Fagundes endireitou-se na cadeira, desviou os olhos para o criado como que a pedir uma explicação e sentiu-se um bocado parvo. Mordeu então o charuto com mais força, enrolou os dedos trémulos ao vidro húmido do copo e sentiu-se gelar por dentro.
A mulher cruzou as pernas com a mesma despreocupação com que se mata um mosquito e sorriu desapaixonadamente. Tirou depois um maço de Chesterfield Lights de uma carteira de plástico azul cião e prendeu um cigarro entre os lábios carnudos. O criado apareceu a rodopiar entre as mesas vazias com um isqueiro a estalar de chamas.
— O que vai ser hoje, menina Rita?
— O costume, Daniel.
O criado deu uma volta sobre si mesmo, olhou em frente e desapareceu por entre as mesas ao som de uma valsa inavegável. António Fagundes ficou a saber pouco depois que o "costume" da menina Rita era um whisky duplo com muito gelo. António Fagundes acabou a cerveja num trago rápido e ficou a apreciar a sagacidade com que a mulher levava o copo aos lábios e não soube o que pensar. Uma pequena erecção começava a sobrevir do meio das pernas. António Fagundes olhou de novo os olhos azuis de tinta da mulher e arrependeu-se por estar ali. Há três anos que estava casado e nunca sentira vontades por mais nenhuma mulher. Mas agora era diferente e a razão perdia-se numa urgência incontrolada.
E nesse momento, enquanto a mulher observava uma malha das meias pretas, António Fagundes decidiu não esperar mais. Apagou o charuto no cinzeiro de vidro baço e ergueu-se com firmeza. Os olhos azuis de tinta da mulher acompanharam aquele gesto com volúpia. António Fagundes deu dois passos e o soalho rangeu.
Sorrindo e de olhos baixos, Daniel, o criado, trouxe num tabuleiro dois exemplares do livro "Monólogos numa esplanada sobre o mar". Parou diante da figura de António Fagundes e disse:
— Peço desculpa por esta minha impertinência, senhor António, mas gostava muito que autografasse este seu livro. Uma obra e pêras. Li-o num instante.
— Claro, Daniel, mas... porquê dois livros?
— Há, claro, que disparate, este outro é da menina Rita — e apontou para a mulher dos olhos azuis de tinta.
É preciso acrescentar que neste momento o coração de António Fagundes respirava a custo. António Fagundes sacudiu a cabeça num gesto breve e sentiu muito próximo de si um aroma intenso a flores silvestres. Ergueu os olhos num silêncio demorado e então tudo à sua volta rodopiou como num carrossel de infância: os olhos azuis de tinta da mulher estalavam o verniz da indecência.
António Fagundes cumprimentou a mulher numa vénia atrapalhada e endireitou-se depois no seu fato já coçado. A mulher soltou uma risadinha agradada com a situação e arrematou num abanar de cabeça:
— O livro não é propriamente meu, é do meu marido. Eu, para dizer a verdade, prefiro escritores que exerçam uma carga sexual mais forte nos seus personagens.
— Vejo que a menina percebe de literatura — disse António Fagundes —, mas deixe-me que lhe diga uma coisa: os meus livros reflectem as minhas experiências mundanas e nada mais.
— É como digo — tornou ela —, tem pouca paixão. Talvez precisem de ser abanadas um pouco essas suas experiências mundanas, senhor António. Não acha o mesmo, Daniel?
O criado encolheu os ombros e disse que não tinha nada a ver com as experiências mundanas do senhor António. A mulher tornou a dar mais uma risadinha agradada com a situação e olhou bem para o interior da pupilas de António Fagundes.
— Acompanha-me numa viagem pela noite, senhor António?
O criado baixou os olhos, tornou a pedir ao senhor António que autografasse o livro porque estava com pressa e resignou-se a esperar o gesto natural do escritor que demorava.
— Peço desculpa, Daniel, toma lá — disse, fechando depois o livro.
O criado deu uma volta sobre si mesmo, olhou em frente e desapareceu por entre as mesas ao som de uma valsa inavegável.
— Diga-me a verdade, senhor António. O senhor deseja-me, não é?
— Por favor, menina Rita...
— Porque não me trata só por Rita?
António Fagundes sentiu-se estalar por dentro e não soube o que dizer. Pela primeira vez na vida, após três anos de casado, alguém o incomodava seriamente daquela forma. António Fagundes queria dizer que não, que não queria, que amava a sua mulher e que não estava disposto a sair da linha mas não conseguiu.
E foi então que os seus olhos chocaram com a beleza de mármore que o decote do vestido da mulher de olhos azuis de tinta despejava: os seios, vigorosos como duas luas cheias, pulsavam espavoridos. E então António Fagundes arrependeu-se de novo de estar ali e, sobretudo, arrependeu-se por não seguir as razões do coração.
— Claro que a desejo... Rita — disse por fim.
— Então porque não responde que sim?
Nesse momento alguém abriu a porta do café e a chuva despedaçava-se lá fora.
— Não sei — respondeu ele. — É que nunca me vi numa situação destas e é-me particularmente difícil pensar correctamente.
— O senhor ama a sua mulher, não é?
— Amo-a muito, sim.
— Eu também amo muito o meu marido, senhor António, e no entanto...
Rita. Toda ela estalava de gozo agora. Rita, um nome que queima.
— Eu apenas quero ajudá-lo a abanar um pouco essas suas, como e, muito bem diz, experiências mundanas, senhor António. Quero apenas que você se liberte em mim, nada mais.
António Fagundes olhou o relógio e pensou que o tempo alastrava devagar e quase de surpresa. De súbito, porém, um grande vento de ansiedade inchando-lhe o peito. Ergueu o sobrolho num sorriso envolvente e reviu toda a sua vida com estremecimento. E com um gesto breve, mas súbtil, disse apenas:
— Vamos, não há mais nada que possamos fazer aqui.
A mulher tomou o livro autografado, examinou-o à luz de uma serenidade fidalguia e depois disse:
— O meu marido vai ficar encantado.
António Fagundes viu o peito da mulher crescer num mergulho abrupto e sentiu-se de novo com o sexo numa balbúrdia.
Tinha parado de chover quando sairam para a rua. António Fagundes mandou parar um táxi e seguiram pela avenida 24 de Julho num sossego implacável. E, então, António Fagundes disse:
— A minha mulher faz hoje anos, Rita.
— Você está a pensar que não devia estar a fazer isto, é isso?
— É, é isso.
A mulher dos olhos azuis de tinta acomodou-se mais ao corpo retesido de António Fagundes, chegou-lhe depois os lábios à orelha esquerda e disse:
— Então das duas uma: ou você come-me já aqui ou vamos para minha casa.
E então foram para casa dela. Uma casa com um tecto altíssimo donde se podia ver o mar mudar de cor. Uma casa onde não havia paredes brancas, onde a luz era trazida pelo vento e onde as colchas cheiravam a sândalo.
António Fagundes estava na sala a observar um quadro de Gustav Klimt quando ela entrou. Trazia uns sapatos muito finos de saltos altos, uma saia curtíssima pincelada a tons de turquesa e um soutien branco. Pediu que se servisse de um whisky e que se pusesse à vontade. E António Fagundes gostou. Gostou daquela falta de pudor e, sobretudo, gostou da frontalidade daquela mulher.
António Fagundes sorriu, disse que estava capaz de subir até à lua e ansioso por fazer amor com ela. A mulher soltou uma risadinha agradada com a situação e apontou-lhe os olhos azuis de tinta:
— Escuta bem uma coisa, queridinho. Amor faço-o com o meu marido, contigo o que eu quero mesmo é foder.
Rita tomou-lhe de seguida as mãos frias de desespero e levou-o para o quarto. Deixou cair a saia curtíssima pincelada a tons de turquesa aos pés da cama e pediu-lhe que a ajudasse com o soutien. António Fagundes tinha o coração assustado quando as suas mãos tocaram ao de leve a pele fresca de Rita. Ela soltou de novo uma risadinha agradada com a situação e mostrou-lhe, de uma vez por todas, a ininterrupta força que os seus seios imprimiam. António Fagundes sentiu que o solo se tornava irregular debaixo dos pés e o ar vibrava como se estivesse por cima de um grande forno.
— Isso... — murmurou ela, sentando-se na cama e sem nunca desviar dele os olhos azuis de tinta.
A certa altura, quando Rita lhe abria cautelosamente a braguilha, e toldado pelo calor, António Fagundes fechou os olhos involuntariamente e começou logo a sonhar com a sua mulher. Mas foi uma imagem rápida, descolorida e demasiado torcida, porque logo a seguir era a voz de Rita quem lhe mordia as águas plúmbeas do cérebro com um pedido desconstructivo:
— Deixa-me tocar-te apenas com a língua a cabeça do pénis.
António Fagundes sentiu primeiro um estalido muito límpido quando ela lhe passou a língua, lentamente, pelo sal do pénis e, só depois sentiu, com um ruído ligeiro e húmido, aquele tropel aveludado correr-lhe nas veias do pénis.
Com os olhos agora semicerrados, Rita guiava-se pelo perfume viril daquele corpo entumescido e cada vez mais duro dentro da sua boca. Os lábios fremiam meigamente a cada inalação e os seus cabelos de espuma flutuavam em curiosas interferências.
Por todo o lado luzes intensas projectavam feixes de raios sobre o corpo de António Fagundes, fazendo-o explodir em todos os sentidos. Rita manobrava-lhe o pénis com uma velocidade máxima, fazendo um ruído electrizante com a língua.
Quando sentiu o sexo completamente duro na sua boca, Rita obrigou-o a masturbar- -se um pouco. Deitou-se depois na cama e prestou atenção aos olhos inquietos do homem. Com as pernas ligeiramente abertas e desviando os cabelos dos olhos, Rita incitava-o a despir-se com calma.
António Fagundes resfolegou, cerrou os punhos e rugiu. Rita olhava-o um tanto apreensiva. O coração batia-lhe depressa, como se estivesse fechada dentro de uma casca demasiado dura. António Fagundes passou-lhe o braço pelo ombro e agarrando o gracioso pescoço penetrou-a suavemente.
— Sim... — disse Rita, encolhendo a cabeça de encontro aos ombros dele.
António Fagundes aprisionou-lhe os braços, cravou-lhe os dedos no peito e mordeu- -lhe a garganta. Ela tornou a deixá-lo entrar e então começaram os dois a agitarem-se violentamente, como um casal de criaturas sem espírito, num completo frenesi.
Pouco depois António Fagundes sentia os saltos altos dos sapatos de Rita cravarem- -se-lhe nas costas. Soltou um gemido e parou, ofegante, com as costas esfoladas e sangrentas. Depois levantou-se e ficou de pé, por instantes, espantando-se com a enormidade dos mamilos de Rita.
— O que tens? — perguntou ela.
— Nada... — respondeu ele, hesitante, e com um gesto fatigado.
— Não podemos parar agora — disse ela em voz alta. A sua voz pareceu-lhe estranhamente alterada.
Rita levantou-se e sorriu, esforçando-se por pensar que não era altura de ter na ideia coisas daquele género. Envolveu-lhe os ombros com os braços ainda quentes e encostou o sexo ao sexo dele.
António Fagundes tinha os olhos brilhantes, a pele corada e um ar não muito feliz quando disse:
— Não consigo deixar de pensar na minha mulher, Rita.
— Se queres pensar na tua mulher enquanto me comes é lá contigo — disse ela —, mas por favor não páres com isto.
António Fagundes baixou a cabeça, pensativo, e sentou-a nos joelhos. Rita beijou-lhe os olhos tristes e tornou de novo a deixá-lo entrar dentro de si. Mais uma vez sentiram completa felicidade.
Rita tinha consciência das mãos dele sobre o seu corpo, mas não conseguia ver mais nada para além da ligeira neblina que lhe toldava a vista. Sentia apenas o ventre dele esmagar-se de encontro ao seu, irrequieto e profundamente corrosivo, cujo mar de mágoa se derramava dentro de si.
Rita abriu depois os braços e deixou-se cair de costas na cama, num gesto de quem triunfa em público. António Fagundes sentiu-se satisfeito quando foi derrubado pelo coice do orgasmo, e então ejaculou numa enorme confusão. Deixou-se depois cair a seu lado e ficaram ali muito tempo.
António Fagundes acordou no dia seguinte com uma dor terrível no pescoço. Foi à casa-de-banho, passou uma mão cheia de água pela cara e entrou na cozinha para beber uma cerveja. Chegou-se então à janela e viu o sol acima do mar. Pouco depois pensava em Rita.
— Pensas na tua mulher, não é?
António Fagundes rodou sobre os calcanhares e estremeceu. Rita, um nome que queima.
— Sim — disse.
Rita estava encostada à ombreira da porta da cozinha e fumava um Chesterfield Lights. Tinha os braços cruzados abaixo da curva dos seios e uns olhos de água. António Fagundes não sabia porquê, mas aquela urgência de partir obrigava-o a mentir. Talvez fosse uma sensação de culpa aquela que lhe apertava o coração.
— Agora tenho de ir, Rita — disse por fim.
— Isso — fez ela com desagrado —, faz o que tens a fazer.
António Fagundes aproximou-se dela e cravou-lhe os olhos com violência. Ela ergueu para ele os olhos azuis de tinta e envolveu-o com os braços: tinha os lábios abertos em ansiedade e as lágrimas pesavam-lhe no rosto.
— Tens mesmo de ir?
— Sabes bem que sim, Rita.
Ela afastou-se e ficou a observar o mar que crescia lá em baixo. Pouco depois dizia:
— Gostava que ficássemos amigos.
António Fagundes não respondeu. Beijou-a nos ombros e saiu para a rua com uma indiferença no olhar. Estava uma manhã fresca, de uma luz rósea, e as ruas mantinham ainda as poças da chuva anterior com os seus ridículos brilhos carregados de luz.
António Fagundes entrou no primeiro táxi que encontrou e fez uma tentativa desesperada para esquecer toda a gente. Quando chegou a casa era em Rita que pensava. Acendeu um charuto e entrou no quarto. A cama lá estava — incómoda e absolutamente inerte. Sobre ela a forma gritante de uma mulher.
António Fagundes inspirou o fumo do charuto e sentou-se na cama para pensar. Por vezes, aquela inebriedade do fumo era para ele como um breve alívio para a dor da alma. Quando acabou de pensar, António Fagundes tinha os músculos do rosto completamente retesidos.
No chão, levado por uma brisa furtiva, uma ponta de cigarro manchada de baton. Pegou-a e imaginou um desespero maior que o seu. Sabia que quando acordasse ela iria perguntar por tudo, até mesmo pelo sangue nas costas da camisa, e pelo cheiro interdito no seu corpo, mas António Fagundes sabia também que as horas ao longo do tempo fazem voltar ao amor que não se reteve. E isso tranquilizou-o um pouco.